SALAS DE EXPOSIÇÃO

Foto: Roberto Castello

Logo após o seu retorno do exílio, Paulo Freire veio a Brasília para participar da 28ª Assembleia da Confederação Mundial das Organizações de Profissionais de Ensino (Cmope), realizada em 5 de agosto de 1980. O educador hospedou-se no Hotel Nacional, local do evento, onde pernoitou, retornando a São Paulo na manhã seguinte. Em seu discurso, durante o evento, defendeu a ideia de que, em uma sociedade repressiva e autoritária, não é ingenuidade se pensar em uma educação libertadora.

Paulo Freire voltaria a Brasília, com mais tranquilidade, em agosto de 1981. Nessa ocasião, teve tempo de fazer alguns passeios, inclusive, visitou a superquadra na qual se localizava o apartamento anteriormente ocupado pelo ex-deputado federal da UDN, Luiz Bronzeado, que o acolhera, juntamente com sua esposa Elza, após o golpe de 1964.

Nessa oportunidade, o educador participou de dois seminários realizados na Universidade de Brasília (UnB) para estudantes de pós-graduação, o primeiro intitulado “Comunicação e Educação Popular”, o segundo, “Sistemas Não Formais de Educação”, coordenados pelos professores Hélène Leblanc, da Faculdade de Educação (FE), e Venício Artur de Lima, da Faculdade de Comunicação (FAC). Em 1980, um grupo desses alunos desenvolveu uma pesquisa inédita sobre a experiência de alfabetização em Brasília (1963). Esses alunos localizaram uma série de imagens, captadas pelo fotógrafo Deobry Santos, dos círculos de cultura na cidade-satélite do Gama, coleção esta que, atualmente, se encontra no acervo do Museu da Educação do Distrito Federal.

Em abril de 1982, a Frente Cultural de Brasília e o Movimento Candango de Dinamização Cultural (Cuca) promoveram o “Seminário Paulo Freire e a educação brasileira”, com quatro dias de intensos debates sobre a obra do educador e uma exposição com as fotografias de Deobry Santos. Esse evento, sediado no auditório do SESC da 913 Sul, em Brasília, animou a vida cultural brasiliense, reunindo mais de 400 pessoas, em um espaço que estava preparado para receber a metade desse público. Paulo Freire não conseguiu estar presente e foi representado por Francisco Weffort, seu genro e intelectual de projeção nacional, que, posteriormente, veio a ocupar o cargo de Ministro da Cultura, no governo de Fernando Henrique Cardoso. As palestras e fotografias foram reunidas na publicação Paulo Freire e a Educação Brasileira.

Devido ao número surpreendente de participantes no seminário, o professor Venício Artur de Lima, em 1982, em entrevista publicada no jornal Correio Braziliense, indagou a Paulo Freire se este não se estaria tornando um mito. Eis a sua resposta: 

Se eu assumir esta condição de mito, estarei assumindo uma contradição enorme com tudo que digo, que penso. É preciso superar esta marca mítica. Luto muito contra a mitificação de minha pessoa. Penso que, se numa reunião de três mil pessoas, 30 por cento trazem a predisposição da procura do mito, como desenrolar do nosso encontro, depois de duas, três horas de papo, de conversas, de perguntas, esta compreensão mítica desaparece. As pessoas saem falando: “O danado do Paulo Freire é igual a todo mundo, não tem nada de estranho.” Em tudo isso, porém, acho que há uma expressão afetiva, uma simpatia humana, que me fazem muito bem. Há algo na minha maneira de falar, de escrever, de caminhar, que provoca esta admiração.

PAULO FREIRE

A admiração e o carinho pelos mais jovens trouxeram o educador mais uma vez a Brasília, em 1983, para participar de uma formatura de estudantes do curso de Letras, no Centro Universitário de Brasília (Ceub). Paulo Freire e a poetisa Cora Coralina foram convidados para serem, respectivamente, patrono e patronesse da turma daquele ano. O então formando Mário Castro, que posteriormente iria divulgar os ensinamentos do educador, na rede pública de ensino do Distrito Federal, foi o responsável pela ideia da homenagem. Paulo Freire aceitou prontamente o convite e ficou hospedado na residência de um dos formandos.

A profunda ligação do educador com a juventude traduzia-se no diálogo permanente que mantinha com os estudantes. Dessa forma, em 1986, quando chegava a Brasília para um encontro com o Grupo de Estudos Universitários (GEU), Paulo Freire concedeu entrevista ao Jornal Campus, da Faculdade de Comunicação da UnB, durante a qual comentou que, desde seu retorno do exílio, já havia participado de mais de 80 formaturas, como patrono ou paraninfo, de diferentes cursos e universidades brasileiras. Segundo afirmou, fazia questão de atender às solicitações porque entendia ser uma homenagem que a mocidade lhe prestava e esses convites o faziam mais responsabilizado diante da juventude que confiava nele.

No seu reencontro com Brasília, Paulo Freire manteve permanente interlocução com a Universidade de Brasília. A presença do ilustre educador na instituição remonta aos tempos de sua criação, nos anos iniciais da década de 1960, quando foi convidado pelo então reitor Darcy Ribeiro para ser professor da instituição. Embora declarasse sua admiração pelo projeto inovador da universidade que se implantava na nova capital, recusou o convite devido aos compromissos profissionais e à sua vinculação com a cidade de Recife. Passados mais de 20 anos, Paulo Freire aceitou atuar como membro do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília, mantenedora da instituição, tendo permanecido como conselheiro no período de 1985 a 1991, durante a gestão do professor Cristovam Buarque como reitor da UnB.

Em razão de sua participação nas reuniões do Conselho, Paulo Freire vinha periodicamente a Brasília e, no tempo livre, reunia-se com professores, estudantes e funcionários, em encontros promovidos pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB) e por outras instituições.

Em palestra proferida na Faculdade de Educação da UnB, em 08 de novembro de 1985, para mestrandos e participantes da disciplina “Educação e Cultura”, Paulo Freire discorreu sobre o tema “Amílcar Cabral, o pedagogo da Revolução”.  A sua participação nesse evento suscitou-lhe lembranças sobre suas vindas anteriores à Universidade de Brasília, depois do seu retorno do exílio. 

[…] para uma conversa como essa, é a primeira vez que eu venho à UnB legalmente, sem nenhuma camuflagem. O Venício me trouxe aqui em 81, creio, com outras pessoas, mas eu vim sem ninguém saber, entrava numa sala misteriosa, porque simplesmente era proibido. Então, eu queria dizer da satisfação de estar com vocês nessa manhã.

Venício Artur de Lima

Maria do Rosário Caetano

Mário Castro

Cristovam Buarque

Hélène LeBlanc

O educador fez referência a Amílcar Cabral como grande liderança dos movimentos de libertação da África e destacou as qualidades marcantes de sua personalidade, quais sejam: a capacidade de prever, o gosto de falar e uma extraordinária competência associada à sensibilidade histórica. Segundo Paulo Freire, essas qualidades são indispensáveis ao saber científico.

De 1985 a 1990, Paulo Freire vinha a Brasília com regularidade para participar das reuniões do Conselho Diretor da FUB e, durante a sua permanência na cidade, era-lhe habitual aceitar convites para participar de eventos, discursar em conferências e debater temas relacionados à educação. Constam informações que, nesse período, esteve na Universidade Católica, bem como no Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF), locais em que teria proferido palestras. No entanto, a esse respeito, não foram encontrados registros e a ausência de documentação não permite o detalhamento dessas atividades.

O ano de 1990, consagrado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) como o Ano Internacional de Alfabetização, impulsionou a mobilização mundial pela erradicação do analfabetismo. Segundo dados da Unesco, o número de pessoas com 15 anos ou mais que não sabiam ler e escrever era de 814 milhões de pessoas (28,9% do total da população mundial). Em 1980, o Brasil ocupava o sexto lugar entre os países com as maiores taxas de analfabetismo, ou seja, 20,3% da população com 15 ou mais sem saber ler e escrever, o que correspondia a 18 milhões de pessoas.

O Brasil participou amplamente dessa mobilização mundial, por meio de numerosas atividades realizadas em todo o país. Coube a Paulo Freire presidir a Comissão Nacional encarregada de elaborar as diretrizes para a programação do Ano Internacional de Alfabetização no Brasil. Nessa época, Paulo Freire era Secretário de Educação Municipal de São Paulo e organizou o Congresso Nacional de Alfabetização, realizado naquela cidade.

Em Brasília, o Ano Internacional de Alfabetização foi celebrado por diversas instituições e movimentos sociais, com destaque para o 1º Encontro Pró-Alfabetização do Distrito Federal, realizado na Universidade de Brasília, nos dias 16, 17 e 18 de fevereiro de 1990. O evento, promovido pelo Grupo de Trabalho Pró-alfabetização do Distrito Federal (GTPA/DF), serviu de marco para a expansão das ações de alfabetização no Distrito Federal e no Entorno. Convidado para proferir a conferência de abertura do referido encontro, Paulo Freire não pôde comparecer, tendo indicado para representá-lo o professor Sérgio Haadad, secretário-geral do Centro Ecuménico de Divulgação e Informação (Cedi).

Ainda no Ano Internacional da Alfabetização, ocorreu outro evento bastante concorrido na Universidade de Brasília, durante a Semana Universitária. Nessa ocasião, a convite da Reitoria, Paulo Freire proferiu palestra no Auditório da Faculdade de Tecnologia, lotado por um público majoritariamente de jovens. O tema proposto, “‘Rumos da educação no Brasil: presente e futuro”, foi abandonado pelo educador, que, em substituição, homenageou os jovens educadores que vinham aplicando o seu método no Gama, em Sobradinho e na Ceilândia e relembrou, com entusiasmo, a experiência de alfabetização de Angicos e de Brasília, nos anos iniciais de 1960.

Por suas ideias e feitos, pela coerência e ética de ser e agir ao longo da vida, Paulo Freire logrou alcançar autoridade e despertou a admiração no mundo inteiro. Em Brasília, o seu crescente prestígio foi testemunhado nas homenagens que lhe foram prestadas, a partir do seu retorno ao Brasil e a sua memória reverenciada pós-morte, em reconhecimento ao seu imenso legado (ver texto 4 – Tributo a Paulo Freire).

Nesse período, as concepções freirianas de educação, com o olhar direcionado aos menos favorecidos socialmente, tiveram influência em ações educativas realizadas por movimentos sociais e, em determinadas circunstâncias históricas, abriram caminho para políticas públicas progressistas no âmbito do Distrito Federal e Entorno (ver texto 3- Memória viva na ação educativa).

Confira a gravação inédita de Paulo Freire na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, em maio de 1988.