SALAS DE EXPOSIÇÃO

O PROGRAMA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO:

uma referência para educação dos trabalhadores no Brasil

Fotos: Deobry Santos

Recém-inaugurada, a capital brasileira foi palco de dias atribulados com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Sucessor de Juscelino Kubitschek, ele teve breve passagem pela presidência da República, tendo a vacância do cargo causado grave crise política no país. A possibilidade de não cumprimento da ordem constitucional, que garantiria a posse do vice presidente João Goulart, gerou resistência de setores da população brasileira e mobilizou parlamentares favoráveis ao movimento legalista no Congresso Nacional. As negociações chegaram a termo com a alteração do regime de governo presidencialista para parlamentarista, criando as condições para assegurar a posse de João Goulart, como presidente da República, em 7 de setembro de 1961. No entanto, as dificuldades de governança geradas pela restrição de poderes do presidente levaram à realização de um plebiscito, em janeiro de 1963, que determinou o retorno do presidencialismo no Brasil.

A plataforma política do governo João Goulart (Jango) propunha reformas de base, com mudanças estruturais no país, visando a integração social, educacional e política da população brasileira. A sua implementação dessas reformas trazia implícita a exigência de elevar o nível cultural e educacional dos trabalhadores, cujos índices de analfabetismo eram alarmantes. Para mudar essa realidade, já em 1962, com a promulgação do Decreto n.º 51.470, de 22 de maio de 1962, que institui a Mobilização Nacional Contra o Analfabetismo como serviço em regime especial de financiamento para o desenvolvimento social e econômico, desencadeou-se mobilização em favor da educação popular, por meio de campanhas e experiências educativas, bem como de cursos de alfabetização de adultos, promovidos por universidades e outras instituições representativas da sociedade. A erradicação do analfabetismo tornou-se uma das prioridades para implementar as reformas de base do governo Jango.

Apesar da grandeza territorial e das notáveis riquezas naturais, o Brasil figurava no rol dos países subdesenvolvidos, com uma estrutura de economia agrária, colonial e dependente. A fim de sair dessa condição, impunha-se incrementar o processo de industrialização em curso no país, na busca de equipará-lo aos países desenvolvidos, tendo em vista a promoção do desenvolvimento econômico, político e social.

As perspectivas de industrialização e crescimento urbano traziam exigências implícitas de elevação dos índices de escolaridade da população, para habilitá-la ao trabalho fabril e ao decorrente desenvolvimento tecnológico, bem como para a conquista da cidadania. Destaca-se, ainda, que a alfabetização de adultos implicava o aumento do número de eleitores, questão muito sensível da política brasileira daquele período, diante do impedimento legal do voto de analfabeto, o que somente veio a mudar com a Constituição de 1988.

No discurso proferido na aula inaugural dos Cursos de Extensão Cultural da Universidade de Brasília, em 21 de abril de 1963, Jango evidencia sua preocupação com o desenvolvimento do país. Veja ao lado trecho do discurso.

A fala presidencial demonstra o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, da premente necessidade de elevar o grau de escolaridade da população. Haja vista que, em setembro de 1963, o número de analfabetos de 15 a 45 anos era de 20.442 milhões de pessoas. Na tentativa de mudar essa realidade, começava a tomar forma uma política de erradicação do analfabetismo no país.

Entre as primeiras iniciativas, o então Ministro da Educação e Cultura Paulo de Tarso convidou Paulo Freire para presidir a Comissão de Cultura Popular, visando à implantação do Sistema de Educação Paulo Freire em Brasília, nos termos da Portaria Ministerial n.º 182, de 26 de junho de 1963. Essa designação foi motivada pelo sucesso obtido pelo educador com seu método de alfabetização, na cidade de Angicos (RN).

Dias depois, a Portaria n.º 195, de 8 de julho de 1963, ampliou a abrangência dessa medida a todo o país e instituiu a Comissão Nacional de Cultura Popular, com a finalidade de implantar, em âmbito nacional, novos sistemas educacionais, de cunho eminentemente popular, de modo a englobar áreas não atingidas pelos benefícios da educação. Presidida por Paulo Freire, essa Comissão tinha entre seus membros Herbert José de Souza (Betinho), Lauro Bueno de Azevedo e Júlio Furquim Sambaqui.

Na sequência, foi criada a Comissão Regional de Cultura do Distrito Federal, por meio da Portaria Ministerial n.º 235, de 29 de julho de 1963. Presidida por Jomard Muniz de Brito, essa comissão tinha o propósito de desenvolver e avaliar experiências de alfabetização em Brasília, com a utilização do método freiriano e verificar a pertinência de adoção do Sistema Paulo Freire, em âmbito nacional.

De fato, a transformação imposta à estrutura econômica das
nações pela revolução tecnológica de nossos dias é, pelo
menos, profunda e irrevogável, e seguramente muito mais
fulminante em seu ritmo, do que a determinada, há dois séculos,
pela revolução industrial. E, ao considerarmos que a revolução
tecnológica nos colhe, historicamente, quando ensaiamos ainda
os primeiros passos vacilantes no rumo da bicentenária
revolução industrial — então nos apercebermos do quanto
teremos de fazer na quase sobre humana tarefa de superação
de deficiências e atrasos sem conta no tempo. Temos de fazer
muito mais que todas as nações verdadeiramente emancipadas
pelo desenvolvimento, e fazê-lo em tempo infinitamente mais curto.
O pior é que, para tão grande esforço, tão poucos somos.
Pouquíssimos, na verdade, somos os que têm condição, em
nosso país, para esta tarefa principal e urgentíssima. Pois se,
das 1.000 crianças que, em 1947, ingressaram nas escolas
primárias do país, 178 concluíram o curso, em 1950: e destas,
96 entraram nos cursos médios, completando o ciclo ginasial,
em 1954, 51 jovens, dos quais 31 diplomaram-se no curso
colegial, atingindo a Universidade, em 1958, 17 dos mil que
haviam, em 1947, iniciado a escalada; se tão baixos são os
nossos índices de escolaridade, em todos os graus do ensino
índices dos mais baixos em todo o mundo então o potencial
humano com que, temos, presentemente, de contar para a tarefa maior de nossa geração, neste país do 70 milhões de habitantes, é como se fossemos uma pequenina nação com apenas 5 ou 10 milhões de habitantes, quando muito. Tal desproporção, é hoje, a nossa vergonha o nosso desafio. Amanhã, há de ser nosso orgulho, se a vencermos, e, tenhamos fé, havemos de vencê-la.

Trecho do discurso proferido pelo então presidente
João Goulart na aula inaugural dos Cursos de Extensão da
Universidade de Brasília, em 1963.

Como culminância das medidas adotadas e mediante a necessidade de promover um esforço nacional concentrado para eliminação do analfabetismo, o governo federal instituiu o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), com base no Sistema Paulo Freire, nos termos do Decreto n.º 53.465, de 21 de janeiro de 1964, assinado pelo presidente João Goulart e pelo Ministro da Educação e Cultura, Júlio Furquim Sambaqui.

Para execução do Programa Nacional de Alfabetização, previa-se a mobilização de agremiações estudantis e profissionais, associações esportivas, sociedades de bairros, municipalidades, entidades religiosas, organizações governamentais, civis e militares, associações patronais, empresas privadas, órgãos de difusão, o magistério e outros setores da sociedade.

De acordo com o planejamento, círculos de cultura seriam implantados em quatro etapas sucessivas, cada uma com a duração de três meses, em todas as unidades da federação. Já em 1964, iniciou-se a primeira fase do programa, que previa a criação de 60.870 círculos com o intuito de alfabetizar 1.834.200 pessoas, na faixa entre 15 e 45 anos, que correspondia a 8,9% da população analfabeta do país.

Importa destacar que Paulo Freire concebia o processo de alfabetização como uma ação cultural, que partia de elementos da realidade dos alfabetizandos e se desenvolvia na inter-relação entre os participantes e o alfabetizador. Nesse sentido, em lugar da tradicional sala de aula, cujas práticas educacionais pautavam-se pela transmissão de conteúdos, o educador inovou ao propor círculos de cultura, nos quais prevaleciam diálogos e debates. Muito além de simples objetivos eleitorais pretendidos por alguns governantes, o método Paulo Freire buscava a transformação dos alfabetizandos em sujeitos de sua aprendizagem, de seu processo de conscientização, de seu protagonismo político e de seu projeto de vida (ver Método Paulo Freire e a leitura do mundo).

A implantação desse programa efetivou-se por meio de projetos-piloto, desenvolvidos, inicialmente, em Brasília e Goiânia. No Rio de Janeiro, escolheu-se como área de aplicação do plano a Baixada Fluminense, onde foram iniciados cursos de capacitação para mil alfabetizadores. Cumpre assinalar que, antes mesmo da instituição do PNA por ato oficial, já havia sido realizada a pesquisa para levantamento do universo vocabular da área, que serviu de base para o artista plástico Francisco Brennand, famoso pintor e ceramista do Recife, criar a série de desenhos, no final de 1963, para compor o trabalho dos círculos de cultura dessa região. Há registros ainda de experiências em outros estados, como Santa Catarina, cujo levantamento vocabular reflete a pesca como temática principal.

Ressalta-se que, em janeiro de 1964, os organizadores do programa puderam contar com verbas federais para a aquisição do equipamento indispensável ao funcionamento dos círculos de cultura e sua divulgação nos municípios escolhidos. Em outras unidades da Federação, como Sergipe, Piauí e São Paulo, os trabalhos chegaram apenas à fase de organização dos círculos de cultura, uma vez que, logo no início dos cursos, o PNA foi abruptamente extinto. O golpe militar deflagrado em 31 de março de 1964, responsável pela ruptura institucional que derrubou o governo João Goulart, pôs fim ao Programa Nacional de Alfabetização, pelo Decreto n.º 53.886, de 14/04/1964, apenas quatro meses após a sua instituição, determinando o recolhimento de todo equipamento e acervo utilizado (ver O golpe militar de 1964 e a perseguição a Paulo Freire).

A experiência de alfabetização de adultos em Brasília, precursora da implantação do Plano Nacional de Alfabetização, obteve êxito nos cursos desenvolvidos ainda em 1963, cujos resultados demonstraram a viabilidade de implantação do Sistema Paulo Freire em nível nacional. Em 1964, a experiência teve continuidade com novas turmas, sendo suas atividades interrompidas pelo golpe militar, que pôs fim à política de alfabetização pelo método Paulo Freire no país.

Rio de Janeiro

Santa Catarina

SALA 3

Da redemocratização a 1996

  • Contexto histórico
  • O Método Paulo Freire
  • Projeto Piloto de Alfabetização/Brasília
  • Plano Nacional de Alfabetização
  • A interrupção do programa com o golpe militar