Exposição Virtual
Slide da experiência de alfabetização em Brasília
Em uma definição clássica, o termo “método” é entendido como o processo racional utilizado para chegar-se a determinado fim. Em se tratando do método criado por Paulo Freire, o percurso a ser trilhado decorre de construção e aperfeiçoamento constantes, tendo em vista atender a finalidade a que se destina: alfabetizar pessoas trabalhadoras adultas, sem escolarização, de modo a capacitá-las a fazer a leitura do mundo, buscando uma tomada de consciência da realidade, para transformá-la.
A pedagogia freiriana não se resume a processos metodológicos que conduzam simplesmente à leitura e à escrita da palavra, dada a compreensão de que esses conhecimentos são os recursos necessários para fazer a leitura do mundo. Nesta concepção, o método nega a mera repetição alienada e alienante de frases, palavras e sílabas, ao propor aos alfabetizandos “ler o mundo” e “ler a palavra”; leituras, aliás, indissociáveis, como enfatiza Paulo Freire. Com essa finalidade, ele propõe uma educação problematizadora, de caráter crítico reflexivo, de desvelamento da realidade, que se desenvolve por meio de diálogo, no decorrer do qual o aprendiz vai descobrindo o mecanismo da formação das palavras escritas.
O trabalho pedagógico, concebido de acordo com tais referenciais, sustenta-se pela dimensão cultural, de cunho antropológico, que vai muito além de proporcionar uma simples leitura desprovida de sentido para o alfabetizando, na medida em que adentra o seu universo existencial. A premissa é de que o homem, como criador de cultura, ao tomar consciência de sua realidade, torna-se sujeito, capaz de, por meio de ação política, contribuir para a sua transformação. As reflexões de Paulo Freire são esclarecedoras da sua opção pelo conceito antropológico de cultura. Como se evidencia na fala do educador, a natureza exprime o que é dado ao homem; a cultura, o que é por ele feito.
“E pareceu-nos que a primeira dimensão deste novo conteúdo com que ajudaríamos o analfabeto, antes mesmo de iniciar sua alfabetização, na superação de sua compreensão mágica como ingênua e no desenvolvimento de crescentemente crítica, seria o conceito antropológico de cultura. A distinção entre dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e comunicação dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isto crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A democratização da cultura – dimensão da democratização fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O homem, afinal, no e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto.”
O ideário freiriano teve sua origem nos movimentos de educação e cultura popular, no início dos anos 1960, marcadamente aqueles orientados por setores da Igreja Católica e formados por jovens membros de organizações, como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Estudantil Católica (JEC), cujo direcionamento consistia na luta pela justiça e renovação da estrutura social. Ao lado de movimentos que se pautavam por outras correntes de pensamento, como o marxismo, havia uma convergência, relacionada ao entendimento de cultura como processo histórico, de natureza dialética, pelo qual o homem, em relação ativa com o mundo e com os outros homens, transforma a natureza e a si mesmo, constituindo um mundo qualitativamente novo de significações, valores e obras humanas, realizando-se como pessoa humana.
Nessa perspectiva, a prática educativa direcionada à formação de adultos trabalhadores socialmente excluídos requer a práxis assentada no binômio conhecimento e ação, visando habilitá-los para a conquista de uma vida cidadã, participativa e crítica.
Paulo Freire criou esse método de alfabetização em um trabalho de extensão universitária ao final da década de 1950, em Recife. Desde então, o método tem sido aperfeiçoado à luz dos resultados de sua aplicação em diferentes localidades. Como princípio, há de se destacar a flexibilidade do método acerca das adequações relacionadas ao território e à cultura local.
Com base na experiência de alfabetização realizada na capital do país, apresenta-se, a seguir, a estrutura do método freiriano, composto pelas seguintes etapas:
O trabalho pedagógico proposto por Paulo Freire parte do pressuposto de que toda pessoa, alfabetizada ou não, dispõe de conhecimentos próprios, originados nas diferentes relações experienciadas durante a vida. Esses conhecimentos e os interesses manifestados pelos aprendizes constituem a matéria-prima para o aprendizado da leitura e da escrita. Dessa forma, a ação preliminar, antes de iniciadas as atividades educativas nos círculos de cultura, consiste na pesquisa do universo vocabular dos alfabetizandos. Em Brasília, essa pesquisa realizou-se em locais como canteiros de obras, Hospital Distrital, rodoviária, acampamentos, entre outros.
Após o levantamento do universo vocabular, inicia-se uma cuidadosa seleção das palavras geradoras para serem utilizadas no processo de alfabetização. Uma palavra é considerada geradora quando possibilita um processo de conhecimento que constitui um estímulo intelectual e afetivo. Usadas no círculo de cultura, deveriam ser fonte de motivação por lembrarem situações existenciais da realidade e da própria vida dos aprendizes.
Para essa seleção, eram observados diferentes critérios: riqueza fonética, sendo as dificuldades colocadas em uma sequência gradativa, e forte entrosamento com a realidade social, política e cultural. Assim, a palavra deveria estar relacionada a situações muito significativas para os alfabetizandos e, ainda, possibilitar a combinação de diferentes famílias silábicas.
A lista de palavras geradoras para Brasília constituiu-se por catorze palavras, cujos fonemas e sílabas se adequaram à sequência de aprendizagem esperada: tijolo, voto, farinha, máquina, chão, barraco, açougue, negócio, Sobradinho, passagem, pobreza, Planalto, eixo, Brasília. As palavras geradoras selecionadas serviam de referência para criar ocasiões que permitissem o debate sobre momentos existenciais do grupo. Cada situação correspondia a uma das palavras geradoras.
Na aplicação do método em Brasília, foi utilizado um conjunto de slides, atinentes às palavras geradoras, produzido pelo MEC, por meio da Comissão Nacional de Cultura Popular e editado pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), em 1963, eram desenhos adaptados à realidade local, conforme visualizados a seguir.
A apresentação do contexto relativo à palavra geradora se dava com a projeção do slide correspondente ao tema gerador, por exemplo, tijolo, o que gerava uma conversa sobre a realidade ligada ao objeto representado pela palavra. Os comentários traziam o assunto para a situação e a experiência dos alfabetizandos, como “preço alto do tijolo, do material de construção; a vida de pedreiro; a marmita que a mulher do pedreiro faz de madrugada; a construtora onde muitos querem conseguir trabalho porque trata melhor seus empregados; a fabricação doméstica de tijolos”. Nessa etapa, havia, em Brasília, a preocupação de preparar, previamente, roteiros para o alfabetizador, com indicação de possíveis subtemas ligados às palavras geradoras e sugestões para a sua análise, o que contribuía para a qualidade das discussões, principalmente quando o alfabetizador era iniciante.
O trabalho educativo realizado com a utilização desses slides, também nominados fichas de cultura, assentava-se na ideia de que os trabalhadores-estudantes eram cultos porque faziam cultura, eram capazes de aprender em diálogo com os seus educadores sobre o objeto e a realidade a ser decodificada. O debate que surge daí possibilita uma releitura da realidade, que pode resultar no engajamento do alfabetizando em práticas políticas com vista à transformação da sociedade. Na condição de estudantes-trabalhadores, até então excluídos do processo educativo, a promoção de um processo dialógico era considerado fundamental para conscientização do oprimido e seu processo de libertação.
Após o debate sobre a realidade sociológica dos estudantes envolvendo as palavras geradoras, as atividades pedagógicas dos círculos de cultura voltavam-se para a construção de “fichas” destinadas ao estudo das famílias fonéticas. Estas “fichas” formavam uma série na qual se via a palavra sozinha, a palavra separada em sílabas e as famílias fonéticas, uma a uma. Nominada também de “ficha da descoberta”, compunha-se pelo conjunto das famílias silábicas a partir da palavra geradora e permitia aos educandos a formação de palavras. Era a descoberta do mecanismo da escrita. As palavras deveriam ser criação dos educandos, de forma espontânea, para que expressassem significado para eles.
Na sequência, são descritos os procedimentos utilizados na experiência de Brasília em torno da palavra TIJOLO.
1º.) Apresenta-se a palavra geradora “tijolo” inserida na representação de uma situação concreta: homens trabalhando numa construção;
2º.) Escreve-se simplesmente a palavra: TIJOLO
3º.) Escreve-se a mesma palavra com as sílabas separadas: TI – JO – LO
4º.) Apresenta-se a “família fonêmica” da primeira sílaba: TA – TE – TI – TO – TU
5º.) Apresenta-se a “família fonêmica” da segunda sílaba: JA – JE – JI – JO – JU
6º.) Apresenta-se a “família fonêmica” da terceira sílaba: LA – LE – LI – LO – LU
7º.) Apresentam-se as “famílias fonêmicas” da palavra que está sendo decodificada:
TA – TE – TI – TO – TU
JA – JE – JI – JO – JU
LA – LE – LI – LO – LU
Esse conjunto de “famílias fonêmicas” da palavra geradora propicia ao alfabetizando juntar os “pedaços”, isto é, fazer dessas sílabas novas combinações fonêmicas que necessariamente devem formar palavras da língua portuguesa.
8º.) Apresentam-se as vogais: A – E – I – O – U
Em síntese, no momento em que o(a) alfabetizando(a) consegue, articulando as sílabas, formar palavras, ele ou ela está alfabetizado(a). O processo requer, evidentemente, aprofundamento, ou seja, a pós-alfabetização.
No projeto-piloto de alfabetização em Brasília, vários círculos de cultura foram visitados pelo ministro Paulo de Tarso. Nessas ocasiões, também esteve presente o educador Paulo Freire. Curiosamente, em uma visita realizada no círculo de cultura do Gama, ficou registrado o momento em que, após a discussão da palavra geradora tijolo, o alfabetizador chamou a atenção dos aprendizes para o estudo das famílias silábicas TI, JO e LO. Rapidamente, um dos alfabetizandos, demonstrando já ter apreendido o mecanismo da leitura, juntou as sílabas e formou, em uma linguagem bem popular, a frase: “tu já lê”.
Foto: Acervo do Museu da Educação do Distrito Federal
Paulo Freire viveu com intensidade esses momentos e, após muitas décadas, ao retornar a Brasília, relembrou-os com emoção:
“Há trinta e três anos eu morei no Hotel Nacional, durante algum tempo, trabalhando com companheiros de Brasília, companheiros de Recife, de São Paulo, instalando o que chamou depois Plano Nacional de Alfabetização. No quarto do hotel, hoje, eu me lembrava das noites em que voltava das cidades-satélites, onde vinha escutar e ver o desenvolvimento do processo de alfabetização, ou de educação popular, eu voltava e quase sempre era difícil dormir, pela emoção que me desgastava, em face das coisas que tinha visto nos debates. A frase que foi hoje citada nos dados biográficos, tu já lê, eu ainda tenho hoje a figura do homem moço, com seu filho no braço – a mulher estava doente – e ele ia para o círculo de cultura levando o bebê; eu me lembro ainda quando ele, depois de ver uma companheira criar uma frase, ele se levantou e disse cheio de vida, de força, de certeza, de esperança. Ele disse “TU JÁ LÊ”!”
Paulo Freire
Por agregar, aos ensinamentos da leitura e da escrita, estratégias pedagógicas direcionadas ao desenvolvimento da consciência crítica e participação política dos alfabetizados, o método Paulo Freire é considerado revolucionário. Além de alfabetizar, conscientizar e politizar, o método traz evidências de ampla e profunda compreensão da educação, razão pela qual lhe é atribuído caráter universal, que o tornou mundialmente conhecido e adotado em vários países. A interrupção das experiências freirianas no Brasil, pelo golpe militar de 1964, levou o educador a peregrinar pelos quatro continentes, durante o longo período em que esteve exilado de seu país, firmando-se como um dos maiores educadores do século XX. (Ver O golpe militar de 1964 e a perseguição a Paulo Freire).